terça-feira, 9 de abril de 2013

(Texto): Breve História do Espírito, de Sérgio Sant'anna





E não é que, à procura de algo novo para ler, em minhas idas à Livraria Cultura, onde quase sempre gasto meus últimos minutos de almoço, encontrei algo que até parece que mentalizei e inseri em uma consciência coletiva, que tornou disponível a alguém com atributos literários muito melhores que os meus, que o condensou de uma forma que eu próprio nunca poderia.

Mais provável ter ocorrido o contrário. Eu é que pesquei este pensamento do tal repositório mental da humanidade, ali posto inadvertidamente pelo autor, mas, diante de tão pífio talento, eu nunca poderia torná-lo em palavras tão bem ditas.

Ou faltou-me coragem para formular e sorver tal invocação, medroso e temeroso que sou quanto ao "cuidado com o que pedes, pois podes conseguí-lo."
 
O fato é que, na introdução ao livro "Breve história do espírito", de Sérgio Sant'anna (Cia. das Letras, 1991), obtive o tão empático comigo texto da

               "Invocação do Demo pelo contista da Província"
 
 
Desesperado, no botequim sórdido, o contista de Ouro Preto invocou do mais fundo de si mesmo as forças demoníacas:

- Ditem-me... ainda que um único e último texto, que contenha a atmosfera desta noite envolta em neblina, em que vagueiam espectros do passado: cavalos com suas narinas fumegantes a resvalar seus cascos nas pedras dessas ladeiras plenas de curvas e surpresas e...

   no interior da carruagem, a dama com seu vestido farfalhante, por quem morreria por um sorriso furtivo atrás de um leque o poeta a espiar por uma nesga de janela, ditem-me...
   o amor de tal ppoeta: pura sombra, invenção de quem crê que assim deve amar e assim ama? Ou uma falta tão sentida que o faz esfregar seu corpo insone contra a cama, gemer e estrebuchar, passar à noite pelo cemitério, sonhando com violações e pactos de morte: uma sede tão ardida quanto a do escravo no pelourinho, ditem-me...

   o gosto dessa água num chafariz de limpidez inatingível, a dor desse escravo, sua última visão embaciada de paisagens africanas, enquanto nas igrejas os sinos dobram, com suas cordas puxadas pelos longos braços da Grande Senhora desde a Europa...

- Ditem-me: o esplendor imperial do sacrifício que no interior dos templos dourados se celebra, o odor do incenso na bênção episcopal, cânticos noturnos, madonas pudicas, a lágrima de cera no olhar do Cristo contemplando a dama, a mesma da carruagem, ditem-me...
  o que abriga esta dama em seus suspiros, sua castidade, a pureza que os homens lhe atribuíram por medo de vê-la transbordar em sensualidade, ditem-me, esta sensualidade...

  o gozo da escrava nos fundos do casarão, o rastejar do senhor e da serpente e a sede destes outros, como eu, que não vieram aos templos mas à zona, a culpa e que males mais buscam aplacar com doses brutas de cachaça...
   ditem-me, o cheiro adocicado desta parte da cidade, fundindo o negro ao branco, o cheiro dos bairros pobres, ditem-me, esta embriaguez, como a cobra que se come pela boca que tudo quer abarcar, o passado mais remoto até este presente, ditem-me...
 
  afim de que eu mesmo me entenda e neste fio me projete para além dessas montanhas, um destinho de poeta e inconfidente, ditem-me, o meu sofrimento e desejo sem limites, ainda que em troca de minh'alma aqui perdida, ditem-me... estas palavras.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

(Mini-crônica): Guta




Guta tem problemas!

Percebi isso há muito tempo. Ela tem dificuldades de lembrar acertadamente. E isso a irrita.

Não a irrita o fato de não lembrar, mas sim de acreditar que lembra (porque ela somente lembra daquilo que quer e na forma que deseja no momento, mesmo que tais desejos mudem a todo instante ) e todos desconfiarem da sua lembrança, tão clara, porém somente em sua visão.

Por exemplo, Guta combinou ontem, sábado, que viria hoje, domingo, visitar-me. Porém, entre o ontem e o hoje, há um transcurso enorme de coisas que normalmente mudam o desejo, o ânimo, a necessidade ou a urgência de tudo na cabeça dela.

Graças a isso, esqueceu da combinação. Não da promessa da visita, mas sim do fato de ser hoje. Facilmente ela transporta o compromisso para amanhã, segunda-feira, e acha claríssima tal situação. Ora, então porque estou cobrando, na noite de domingo, uma visita prometida para a segunda?

Por esse motivo, Guta se sente muito cobrada e injustiçada. Tais cobranças são o motivo de sua extrema, e por vezes violenta, irritação. Então Guta resolveu se fechar. Não que tolere as cobranças, pois as acha injustas, mas tenta ignorá-las quando e o quanto pode, o que por vezes é muito pouco de fato.

Guta não tem tempo ou desejo firme para nada, exceto jogar ou fumar, de tudo que se possa imaginar de ambos os dois.

Por seu desejo ficaria assim, a noite inteira jogando, parando por vezes para um petisco ou outro, um cigarro ou outro, até o raiar do dia, até o cansaço lhe tomar as forças, e ver-se obrigada a cair em seu local escolhido para dormir, um colchão jogado na sala.

O dia para Guta poderia ser gasto parcialmente nesse lugar, parcialmente no banheiro, parcialmente comendo mais petiscos e guloseimas, parcialmente com novas partidas on-line. Nada mais a faria feliz por esses dias.

É! Guta tem problemas!

E esse hábito desregrado e até imundo fatalmente a leva a ter dores estomacais e constantes alergias. Mas, Guta não considera que seu comportamento a leva a tais sintomas. Imputa isso à cobrança injusta pela qual é constantemente massacrada.

Guta não quer estudar. Desde há muito tempo.

Acha que isso se deve a seu próprio caráter. À sua própria personalidade. Nada a faz perceber a correlação entre o consumo da maconha e o desempenho escolar, que despencou justamente após tal hábito. Claramente há uma forte relação, ao menos é o que se observa na realidade. Mas, para Guta é justamente o contrário, como todo viciado,  gosta de defender o seu hábito e tudo que o representa. Pensa que é melhor diminuir a si mesma do que jogar a culpa em seu vício.

Guta não quer ser ajudada. Ela não compreende a origem de seus problemas. Pensa que só lhe ássarão reprimendas e uma única recomendação passar por psicanálise e parar com o vício. E não é que não esteja somente despreparada para isso. É que ela crê piamente que esse não é o seu problema. Pelo contrário, talvez até tenha sido a sua solução. Como abandonar um grande amigo que só te dá alegrias?

Guta agora terá mais problemas, ou, quem sabe, encontrará a solução de todos eles?!

É que ela inicia sua vida profissional, já que a vida estudantil foi deixada à inanição e acabou por desfalecer. Será que no âmbito de um local de trabalho Guta se sentirá estimulada a cumprir compromissos e na forma exata em que foram assumidos, e será que melhorará a sua postura e a sua higiene, e será que diminuirá a sua irritação explosiva quando cobrada, e ainda, será que diminuirá a sua fissura pelo que a vicia?

Não sei. Mas, quem a ama aposta todas as fichas nisso.