quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

(Excerto): Persuasão

(...)
Acostumou-se com isto. A ver-te, tão-somente. E assim, foi desejando, foi imaginando. E foi sonhando. E continua a ver-te.
Tão-somente.
Mas, não era assim desde o começo. Era menos visceral, menos queixoso do que é hoje, que fica a queimar, a induzir, a fazer o que for possível para ter-te.
Veja bem, diz, há vantagens em ceder.
Novamente. Indaga. Pense bem. Há múltiplas vantagens.
Nunca terá compromisso? Isto é bom. É certa a afirmação. Na maioria dos casos, compromisso é realmente um problema.
Tem ainda mais sólidas razões para sucumbir.
Haveria um maluco a menos no mundo. Um homem a menos a maquinar idéias, a procurar subterfúgios para investidas malucas. Um propenso a maníaco a menos por perto de você.
Há argumentos melhores que estes? Sim, ainda há.
Afinal, já não disseram que a melhor forma de livrar-se dos demônios é render-se a eles? Ou foi justamente o contrário? Não interessa. Certamente é bem mais fácil sucumbir do que resistir, e esse é o melhor argumento.
A resistência drena energias preciosas.
A resistência somente se justifica se uma vida estiver em jogo ou um bem ou uma pessoa a quem se deseja proteger.
Não é o caso.
(...)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

(Devaneio): Não interessa

Caramba! Acabei de lembrar da música dos Engenheiros do Hawai.

Aquela que, para mim, é sem dúvida a mais bela deles, e talvez, uma das mais inspiradas letras de música que já ouvi. Genial.

É a "Exército de um homem só". Vai um link para o vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=B2s3dBxXtq8&feature=related

Amigo, e não é que eu somente sabia os primeiros versos da canção? Mas, como disse o autor, isso não importa, porque ele escreverá o resto mesmo, devagar, de forma sofrida, mas com precisão, nem sempre nos lugares apropriados, nem sempre nos momentos felizes. De uma forma ou de outra será escrito.

E é em cima do "não importa"que eu gostaria de focar meu pensamento.

Eles tem razão. Não importa mesmo. Se irão ler ou ouvir ou comentar ou se isso irá repercutir ou transformar alguma coisa ou alguém. Essas coisas são sementes jogadas ao vento. É como a parábola do semeador de Jesus Cristo.

Jogamos ao vento tais sementes. Uma parte cai ao sol e se resseca, nada produzindo, outra parte cai entre pedregais e não pode prosperar, pois não consegue chegar à luz do sol; ainda outra parte fica no caminho e as aves a consomem. Mas, um ínfima parcela cai em solo úmido e adubado, e germina, e floresce e dá uma produtividade que compensa tudo que foi perdido.

É isso aí. Não importa aquelas que não prosperaram. De repente, uma palavra, uma letra, uma canção, uma idéia que em corações e mentes não apropriadas de nada adiantariam, cai em um solo ideal e produz imensa diferença.

Por isso, o principal da semeadura, o principal na produção, o principal na entrega, é, ao final das contas, a satisfação do entregador. É ele, e somente ele, que será satisfeito em um primeiro momento. A sua produção precisava ser expulsa de si. Se permanecesse com ele o corroeria por dentro.

Então, é a ele que importa isso tudo. Então, deixem que só o primeiro verso seja tocado, seja lembrado, seja citado, como algo  monocórdico. De qualquer forma, o resto estará lá, para momentos, olhos, ouvidos e corações adequados.

Eles surgirão.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

(Mini-Crônica): Ela pensou

Ela saiu do vagão.

O primeiro cheiro que veio foi acre, salgado, marinho. Parecia que estava entrando em um barco de pesca, o cheiro de mil matanças, o cheiro de vida se diluindo em água salgada. Pensou que ouviria logo as gaivotas voando por sobre sua cabeça.

Seu primeiro pensamento, "deve estar chovendo".

Depois conjecturou, "é o cheiro de proximidade de vida e morte, o cheiro de desilusão, quando se percebe o quanto se perdeu, e aparece o arrependimento e não há mais como voltar, quando as redes se fecham a nossa volta, e aquilo que nos sustinha é o que nos mata, e aquilo que respirávamos nos afoga, e aquilo que sorvíamos é o que nos envenena".

Andou mais um pouco, e o cheiro foi se diluindo, se misturando a outros aromas, apesar de ainda dominar por todos os lados.

E observou, "é aqui que devo parar, parar de reclamar, parar de encontrar problemas em tudo, parar de querer mudar tudo, querer adaptar as coisas a mim, aceitar melhor o que é e o que está, afinal se assim foi, é por que há um motivo, uma função. Lutar contra só trará tristeza e desgosto e desilusão."

Foi chegando à escada, e se aproximou de mais gente. Aqui o odor ainda permanecia e o que o estava trazendo não desejava ausentar.

E pode imaginar-se se tivesse escolhido outra vida, se fosse outra pessoa, se não tivesse ninguém que a esperava, ninguém que a desejava, ninguém que necessitasse dela. Poderia voltar para trás, poderia ir ver o mar agora, e sentir seu verdadeiro olor, sua brisa, suas gaivotas e seus pesqueiros. Mas não. Nada disso seria o mesmo.

Quando chegou no piso superior já sentia somente uma leve brisa, vinda de fora. Aqui não havia mais o cheiro, não havia mais nenhum aroma.

E pensou "seria assim, haveria somente o nada. Haveria somente o vazio. O quarto vazio, o carro vazio, o lado vazio. Não haveria alguém a chamá-la, a precisar de sua presença, a desejar sua perpetuação. Não haveria!"

Foi quando saiu da estação. E era somente a chuva. Somente. Grossas gotas caiam nos pedestres desavisados. Pingos retos, sem vento, inflexíveis, obstinados, não davam chance de fuga ao cidadão sem destino, e quanto mais indeciso, mais molhado. Aqui, a obstinação poderia valer uma calça seca.

Mas, era somente a chuva. Molhada. Tradicional. Simples. Resolvível com um guarda-chuva...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

(Devaneio): Agora entendo

Entendeu agora a sua aversão por seres humanos?

Finalmente. 

Eles são, de fato, dignos de pena.

Entendeu agora, finalmente, o seu medo? 

Bem, ele te dirá, “não é por aí”. “Não tenho essa aversão toda, e, muito menos, esse medo que você disse. É apenas distanciamento, tá bom?”.

Ok! Então, entendeu agora, finalmente, o seu distanciamento dos seres humanos?

Ficou bom assim?

Na verdade, é que você gostaria tanto de ser assim, que, ao final de tudo, acabou por tornar-se. Distante! Embora sem possibilidade de fuga. Isso não! Apenas distante.

Mas, talvez seja questão de tempo. Algumas décadas, para ser mais preciso. Compreenda, é um tempo que ainda cabe em sua vida. Então, é factível.

Hoje, há o distanciamento presente. Distanciamento bem perto. Aquele, distante na alma, como diriam. Mas, ainda não é nem isso do que se fala. É distante no pensamento, nas necessidades, nos compartilhamentos. É a apatia, ampla, geral e irrestrita.

Deseja estar ausente, deseja só a si próprio. Só. Almoçar consigo mesmo, sair consigo mesmo, estar consigo mesmo. Não abre de seus recessos fisiológicos no toalete. Trata-se apenas de um mini asilo. Fugaz vislumbre de uma clausura futura mais ampla e aparelhada.

Naquelas três paredes e uma porta pode refugiar-se. Ninguém o vê. Lá, como em nenhum outro local, você pode orar, chorar, bendizer, maldizer, confessar, questionar, propor, aceitar, confabular, sem ninguém saber ou julgar.

Maluquice? Talvez!

Então. Agora, você entende seu distanciamento. Mas, nele é tão sutil e tão impregnado em sua alma, que passa despercebido. Nem você, nem ninguém, dos poucos que a rodeiam, notam. É um isolamento inerente ao seu ego. É algo inexorável. Sendo assim, não poderia ser diferente, vindo dele. Sendo assim, falha seria o contrário.

Para você não funciona assim. Ainda não é bem aceita a idéia. Soa falso. Ainda não se ajusta ao seu agir, falar e pensar. Ainda não está... de acordo.

Luta para isso. Com certeza, atingirá. Mas, sempre será meio estrangeiro nesse país. O estranho no ninho. O patinho feio. Falará como que se achando fluente nesse linguajar, embora os que o rodeiam percebam o seu grasnar de outras terras, lembranças de onde passou e imagens do que presenciou.