quinta-feira, 22 de agosto de 2013

(Excerto): Prostituição [de "Desconexos ou Sem Pé Nem Cabeça"]

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Prostituição


   Selene era uma moça sonhadora. Disso ninguém duvidava. De sonhos alimentava sua alma. Por vezes achava que seu próprio corpo era unicamente sustentado por isso. De ilusão passava as manhãs e fartava-se de pensamentos no almoço.
Ao final da tarde já estava novamente faminta, tendo gastado todas as suas reservas de esperança no transcorrer de dureza do seu dia. Recompunha seu estoque ao botar a cabeça no carcomido pedaço de espuma que chamava de travesseiro. Retornava então a seu mundo real de devaneios e experiências oníricas.
E sempre sonhava com o mesmo belo príncipe. Tão belo que sentia vontade de chorar ao vê-lo (e quase sempre chorava mesmo). Mas, chorava de felicidade, porque, nos sonhos, ele era somente dela, fora feito para ela e com ela viveria para sempre.
Era ele quem sempre afirmava isso.
Porém, a beleza era tamanha, que a amedrontava! Como pode o belo ser causa de tanto medo? E não era medinho sem explicação. Transmudava em pânico, muitas vezes. Ela o via e chorava copiosamente, sempre temendo que aquilo lhe escapasse pelos dedos, pois lhe parecia líquido.
A felicidade é fluída, a sentimos enquanto não nos escapa.
Passava a noite sonhando com ele. Semanas, meses e anos. Havia muita cumplicidade entre ambos em seu sonho, como se os dois sonhassem um com o outro, o mesmo sonho.
Mas, havia uma tristeza nesses sonhos, nesses pensamentos, nessas esperanças. Por mais real que fossem as sensações, havia uma certeza velada, uma verdade oculta, mas sabida. Essa coisa inexorável de que tudo aquilo nunca passaria disso mesmo, ou seja: Um sonho. Por isso a fuga, a cumplicidade, a sinceridade, que ela mantinha consigo mesma a esse respeito.
A fim de evitar se constranger, a fim de prevenir decepções, se mantinha fiel a si mesma, mais do que aos seus sonhos e ilusões. Eles eram somente alimento de sua alma. Frutos cultivados no único terreno que a pertencia. Aí os mantinha sempre frescos, pois a todo instante precisava de um. Quando menos pudessem esperar lá estava ela, se banqueteando de esperanças, de sonhos, de ilusões...
Mas, eis que a vida corre muito rápida, principalmente para uma menina que se alimenta de sonhos. Um dia se olhou no espelho e viu-se moça, e quando menos desejava, tornou-se uma mulher. E não uma mulher qualquer.
Os que a cercavam comemoraram esse desabrochar, uns por puro deleite de vê-la, outros por puro desejo de tê-la, e ainda outros por pura necessidade de usá-la, de forma pragmática.
Afinal, certamente, uma moça tão bela, nunca iria passar fome, e nem sua família. Decerto que não!
Por um tempo, Selene se traiu. Permitiu-se a tanto. Pensou em seguir seu príncipe, em entregar sua inocência a ele. Pois, por incrível que pareça, do nada, o tal príncipe havia se materializado. Estava ali. E se não foi, se não seguiu tal impulso, foi porque não lhe pediu, não lhe tentou, não lhe seduziu. Mas foi-se. O príncipe. Foi embora. Tão simples e repentinamente como surgiu.
Uma moça pobre como Selene não pode se iludir a ficar com moço tão formoso. Um príncipe afinal.
Então Selene optou pelo que lhe foi pedido. Por aquele que, de fato, a tentou, que a seduziu. E a ele se entregou. E lhe concedeu sua inocência, porque assim ainda era, embora com pouca vontade. Essa que, apesar de mínima, era suficiente para tão breves sentimentos, prazeres tão efêmeros.
E no começo foi assim. O fazia por questão de sobrevivência. Porque era o que esperavam dela. E o que mais poderia fazer para ajudar os seus? Por acaso poderia ser advogada, ou engenheira, ou médica. Talvez pensasse em ser professora, quem sabe? E talvez conseguisse, talvez pudesse ensinar sua trajetória de vida. Um dia, talvez!
E, no começo, os clientes eram gentis. E eram limpos, pelo menos. E faziam com cuidado, a pegavam com zelo, afastavam devagar suas coxas, se imiscuíam com cerimônia no vão deixado por suas pernas, apalpavam seu sexo como quem tem uma taça de cristal na mão, como se fosse um graal de sagrada delicadeza e raridade infinita.
E assim ela se parecia. Um bem precioso a ser usado com extrema parcimônia, a fim de mantê-la como que intocada, para um próximo uso.
E esse cuidado todo durou um tempo, não suficiente a ponto de achar que estava segura, definitiva, em um lugar seu.
Ela chegava bem cedo, se trocava e já partia para o ofício. No começo havia vários clientes. Todos marcados com antecedência, todos ávidos pela novidade. E vários poderiam ser rejeitados, alguns o eram, outros eram aceitos por pena. Quantas vezes aceitou somente por dó da tamanha alegria daquela pessoa ao vê-la desnuda.
Mas, poderia ser servida por quem lhe aprouvesse. Não que sentisse prazer. Não que esses escolhidos pagassem mais. Pelo contrário. Mas, sentia que sua situação, sua culpa, sua prostituição diminuísse um pouco se usasse a prerrogativa de recusar, por motivos pessoais, por motivos não necessariamente expostos, e, principalmente, nem sempre vinculados a quanto o sujeito pudesse lhe pagar.
E não é assim que agem as ditas mulheres de bem, ou as normais? Não abriam suas pernas e ofereciam sua vagina e demais orifícios a somente quem lhes aprouvesse. Talvez essas, ditas “mulheres de bem”, ponderassem uma relevância bem maior à parte financeira, fossem bem mais condescendentes, em relação a furtivas e obscuras ofertas em dinheiro ou bens ou serviços, do que Selene, a prostituta, no alvorecer, no desabrochar, no conquistar de sua vida profissional.
Sim, poderia se sentir bem menos prostituta ao agir assim.
Mas, com o tempo, sua vida foi se enchendo de necessidades, ora uma comida diferente, ora uma roupa diferente, ora uma moradia melhor, um carro, outro carro melhor e mais, e mais. E essa prerrogativa teve de ser posta de lado. E a questão financeira passou de relevante para crucial.
E, com isso, a prostituição ampla, geral e irrestrita tomou conta de sua existência. E a falta de prazer passou a ser regra, como única forma de sentir-se ainda limpa e imune.
Até que os clientes que sobraram, nessa busca de dinheiro e desprazer, eram os porcos que hoje a impregnam. Até que...
Até que decidiu: Já que tem de ser assim, então que se aguente um porco somente e retorne a meus sonhos, retorne a meu príncipe, a meus devaneios impossíveis.
E foi assim. Desde então, e até hoje. E assim será. E seu príncipe a visita desde então. Em seus sonhos. Nunca mais se materializou. Não mais. Onde andará? Será que ainda é tão belo quanto em seus sonhos? E se a encontrasse? Será que ainda se interessaria por suas pernas flácidas, suas nádegas encovadas e seus seios caídos? Ainda se lembraria do esplendor de Selene, em sua primeira e única aparição, quando ela transbordava leite e mel e seu suor era como perfume adocicado, e era como um banquete na visão de tristes e desolados caminhantes vindos de desertos escaldantes?
Aquela lembrança ainda poderia encantá-lo e, tomado por ela, ele a obrigaria a largar tudo e segui-lo. E ela, mesmo que com muito mais a perder do que antes, teria forças para assim fazer?
Melhor não. Melhor permanecer assim. Melhor continuar a atender os caprichos do seu porco, bendito e salvador. Aguentar seu corpo balofo, ensopado de suor, seu fedor, seu jeito grosseiro, suas mãos ásperas amassando o pouco de dureza que resta nas carnes de Selene. Afinal, sempre é por pouco tempo. Sempre haverá a esperança de que isso acabe. E depois...
Depois, Selene poderia continuar a sonhar tão-somente. Tão somente com seu príncipe. E voltaria a ter dezessete anos...
   Dezessete anos para sempre.

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