Selene era uma moça
sonhadora. Disso ninguém duvidava. De sonhos alimentava sua alma. Por vezes
achava que seu próprio corpo era unicamente sustentado por isso. De ilusão
passava as manhãs e fartava-se de pensamentos no almoço.
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Ao
final da tarde já estava novamente faminta, tendo gastado todas as suas
reservas de esperança no transcorrer de dureza do seu dia. Recompunha seu
estoque ao botar a cabeça no carcomido pedaço de espuma que chamava de
travesseiro. Retornava então a seu mundo real de devaneios e experiências
oníricas.
E
sempre sonhava com o mesmo belo príncipe. Tão belo que sentia vontade de chorar
ao vê-lo (e quase sempre chorava mesmo). Mas, chorava de felicidade, porque,
nos sonhos, ele era somente dela, fora feito para ela e com ela viveria para
sempre.
Era
ele quem sempre afirmava isso.
Porém,
a beleza era tamanha, que a amedrontava! Como pode o belo ser causa de tanto
medo? E não era medinho sem explicação. Transmudava em pânico, muitas vezes.
Ela o via e chorava copiosamente, sempre temendo que aquilo lhe escapasse pelos
dedos, pois lhe parecia líquido.
A
felicidade é fluída, a sentimos enquanto não nos escapa.
Passava
a noite sonhando com ele. Semanas, meses e anos. Havia muita cumplicidade entre
ambos em seu sonho, como se os dois sonhassem um com o outro, o mesmo sonho.
Mas,
havia uma tristeza nesses sonhos, nesses pensamentos, nessas esperanças. Por
mais real que fossem as sensações, havia uma certeza velada, uma verdade
oculta, mas sabida. Essa coisa inexorável de que tudo aquilo nunca passaria
disso mesmo, ou seja: Um sonho. Por isso a fuga, a cumplicidade, a sinceridade,
que ela mantinha consigo mesma a esse respeito.
A
fim de evitar se constranger, a fim de prevenir decepções, se mantinha fiel a
si mesma, mais do que aos seus sonhos e ilusões. Eles eram somente alimento de
sua alma. Frutos cultivados no único terreno que a pertencia. Aí os mantinha
sempre frescos, pois a todo instante precisava de um. Quando menos pudessem
esperar lá estava ela, se banqueteando de esperanças, de sonhos, de ilusões...
Mas,
eis que a vida corre muito rápida, principalmente para uma menina que se
alimenta de sonhos. Um dia se olhou no espelho e viu-se moça, e quando menos
desejava, tornou-se uma mulher. E não uma mulher qualquer.
Os
que a cercavam comemoraram esse desabrochar, uns por puro deleite de vê-la,
outros por puro desejo de tê-la, e ainda outros por pura necessidade de usá-la,
de forma pragmática.
Afinal,
certamente, uma moça tão bela, nunca iria passar fome, e nem sua família.
Decerto que não!
Por
um tempo, Selene se traiu. Permitiu-se a tanto. Pensou em seguir seu príncipe,
em entregar sua inocência a ele. Pois, por incrível que pareça, do nada, o tal
príncipe havia se materializado. Estava ali. E se não foi, se não seguiu
tal impulso, foi porque não lhe pediu, não lhe tentou, não lhe seduziu. Mas
foi-se. O príncipe. Foi embora. Tão simples e repentinamente como surgiu.
Uma
moça pobre como Selene não pode se iludir a ficar com moço tão formoso. Um
príncipe afinal.
Então
Selene optou pelo que lhe foi pedido. Por aquele que, de fato, a tentou, que a
seduziu. E a ele se entregou. E lhe concedeu sua inocência, porque assim ainda
era, embora com pouca vontade. Essa que, apesar de mínima, era suficiente para
tão breves sentimentos, prazeres tão efêmeros.
E
no começo foi assim. O fazia por questão de sobrevivência. Porque era o que
esperavam dela. E o que mais poderia fazer para ajudar os seus? Por acaso
poderia ser advogada, ou engenheira, ou médica. Talvez pensasse em ser
professora, quem sabe? E talvez conseguisse, talvez pudesse ensinar sua
trajetória de vida. Um dia, talvez!
E,
no começo, os clientes eram gentis. E eram limpos, pelo menos. E faziam com
cuidado, a pegavam com zelo, afastavam devagar suas coxas, se imiscuíam com
cerimônia no vão deixado por suas pernas, apalpavam seu sexo como quem tem uma
taça de cristal na mão, como se fosse um graal de sagrada delicadeza e raridade
infinita.
E
assim ela se parecia. Um bem precioso a ser usado com extrema parcimônia, a fim
de mantê-la como que intocada, para um próximo uso.
E
esse cuidado todo durou um tempo, não suficiente a ponto de achar que estava
segura, definitiva, em um lugar seu.
Ela
chegava bem cedo, se trocava e já partia para o ofício. No começo havia vários
clientes. Todos marcados com antecedência, todos ávidos pela novidade. E vários
poderiam ser rejeitados, alguns o eram, outros eram aceitos por pena. Quantas
vezes aceitou somente por dó da tamanha alegria daquela pessoa ao vê-la desnuda.
Mas,
poderia ser servida por quem lhe aprouvesse. Não que sentisse prazer. Não que
esses escolhidos pagassem mais. Pelo contrário. Mas, sentia que sua situação,
sua culpa, sua prostituição diminuísse um pouco se usasse a prerrogativa de
recusar, por motivos pessoais, por motivos não necessariamente expostos, e,
principalmente, nem sempre vinculados a quanto o sujeito pudesse lhe pagar.
E
não é assim que agem as ditas mulheres de bem, ou as normais? Não abriam suas
pernas e ofereciam sua vagina e demais orifícios a somente quem lhes
aprouvesse. Talvez essas, ditas “mulheres de bem”, ponderassem uma relevância
bem maior à parte financeira, fossem bem mais condescendentes, em relação a
furtivas e obscuras ofertas em dinheiro ou bens ou serviços, do que Selene, a
prostituta, no alvorecer, no desabrochar, no conquistar de sua vida
profissional.
Sim,
poderia se sentir bem menos prostituta ao agir assim.
Mas,
com o tempo, sua vida foi se enchendo de necessidades, ora uma comida
diferente, ora uma roupa diferente, ora uma moradia melhor, um carro, outro
carro melhor e mais, e mais. E essa prerrogativa teve de ser posta de lado. E a
questão financeira passou de relevante para crucial.
E,
com isso, a prostituição ampla, geral e irrestrita tomou conta de sua
existência. E a falta de prazer passou a ser regra, como única forma de
sentir-se ainda limpa e imune.
Até
que os clientes que sobraram, nessa busca de dinheiro e desprazer, eram os
porcos que hoje a impregnam. Até que...
Até
que decidiu: Já que tem de ser assim, então que se aguente um porco somente e
retorne a meus sonhos, retorne a meu príncipe, a meus devaneios impossíveis.
E
foi assim. Desde então, e até hoje. E assim será. E seu príncipe a visita desde
então. Em seus sonhos. Nunca mais se materializou. Não mais. Onde andará? Será
que ainda é tão belo quanto em seus sonhos? E se a encontrasse? Será que ainda
se interessaria por suas pernas flácidas, suas nádegas encovadas e seus seios
caídos? Ainda se lembraria do esplendor de Selene, em sua primeira e única
aparição, quando ela transbordava leite e mel e seu suor era como perfume
adocicado, e era como um banquete na visão de tristes e desolados caminhantes
vindos de desertos escaldantes?
Aquela
lembrança ainda poderia encantá-lo e, tomado por ela, ele a obrigaria a largar
tudo e segui-lo. E ela, mesmo que com muito mais a perder do que antes, teria
forças para assim fazer?
Melhor
não. Melhor permanecer assim. Melhor continuar a atender os caprichos do seu
porco, bendito e salvador. Aguentar seu corpo balofo, ensopado de suor, seu
fedor, seu jeito grosseiro, suas mãos ásperas amassando o pouco de dureza que
resta nas carnes de Selene. Afinal, sempre é por pouco tempo. Sempre haverá a
esperança de que isso acabe. E depois...
Depois,
Selene poderia continuar a sonhar tão-somente. Tão somente com seu príncipe. E
voltaria a ter dezessete anos...
Dezessete
anos para sempre.
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