sexta-feira, 4 de março de 2016

(Pensamentos): Minha indignação

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É importante deixar claro porque me sinto tão indignado com a alegria de algumas pessoas por uma provável prisão de Lula e família.

O que gira em torno disso são os meus pensamentos a respeito do que é importante e desejável em uma democracia.

E quais são as qualidades de uma democracia?



Muitas, mas aquelas que mais me interessam nesse momento são as declaradas nos artigos iniciais da Constituição Federal, a saber, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (§único do art. 1º) e “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º).

O primeiro princípio nos remete à questão da eleição e a legitimidade dos escolhidos no pleito, seguindo suas regras, o segundo princípio nos remete a um conceito chamado de isonomia, ou seja à igualdade no tratamento do Estado com os cidadãos, o que, dentre outros atributos, nos dá tranquilidade em aceitar julgamentos.

Porém, antes de tratar da afronta ao regime democrático, gostaria de dizer que, para mim, está claro que a forma como se abordou o escândalo de corrupção na Petrobrás e os desdobramentos dessa abordagem na sociedade civil transpassa a simples intepretação jurídica dos fatos.

Na verdade, há uma importantíssima componente sociológica aqui.

Senão vejamos, se o tratamento dado ao caso fosse somente em virtude da não aceitação  popular a casos de corrupção no Brasil, então deveríamos agir da mesma forma com uma multidão de políticos sobre os quais recaem suspeitas e evidências de corrupção há longa data, e nem vou citar nomes.

Porque ninguém bate panelas ou buzina quando tais políticos fazem discursos na televisão ou aparecem em seus horários eleitorais? Porque não há uma emissora, jornal ou revista especializada em publicar, em todas as suas edições, fatos e fotos novos envolvendo esses políticos, por menores que sejam, mesmo envolvendo amigos ou gente que diz que os conhecem? Porque não ouço comentários do tipo, “hoje é o dia mais feliz de minha vida porque o político Fulano ou Beltrano e seus filhos e esposa finalmente serão presos” (coisas que sou obrigado a ouvir por alguns que esperam uma eventual prisão de Lula e/ou família como se isso fosse a volta de Jesus Cristo)?

A questão sociológica, a que me refiro e que, muito provavelmente, explica todo esse ódio, é a ferida grave que Lula, mal ou bem, de forma torta ou não, fez na autoestima da classe média tradicional, principalmente a dos centros urbanos. Não a dita classe média “baixa”, ou aquela novíssima classe média que ascendeu na última década e meia, mas a classe média antiga, mesmo que decadente, e principalmente a classe média “quatrocentona”, que, por se considerar conservadora, se autointitula defensora da moralidade e da ética.

Só que essa titulação é um embuste desde o princípio. Todos sabemos que, majoritariamente, a classe política brasileira vem do seio da classe média, notadamente da “quatrocentona” que hoje gosta de bater panelas. E estamos cansados de ver procedimentos desastrosamente reprováveis de membros dessa classe, na figura de profissionais inescrupulosos e antiéticos em suas atividades e no trato pessoal, que causam muito mais prejuízo ao dia-a-dia das pessoas e de sua comunidade do que seus congêneres corruptos nos gabinetes públicos.

Então, se essa tradicional classe média (e também aqueles que se identificam com suas dores) hoje se revolta mortalmente com Lula, porque assim se comporta?

O problema gira em torno da perda de parte de seus privilégios de classe. Há membros da classe média tradicional que o dizem publicamente, mas a maioria se ressente veladamente, e alguns nem se dão conta disso.
 
A perda desses privilégios é atestado pelo fato de que, até cerca de 15 anos, somente os membros da classe média tradicional para cima poderiam, por exemplo, viajar de avião, ou fazer turismo ao exterior, ou comprar carro zero quilômetro, ou adquirir últimos lançamentos de aparelhos eletrônicos, ou fazer faculdade. Eram aceitos nesse meio alguns membros da classe média baixa ascendente e um ou outro pobre também era trazido para o meio como “peça de demonstração”, ou “para acalmar a patuleia”, para que se convençam de que “somente trabalhando eles também conseguiriam”.

Porém, na última década e meia, cada vez mais, observávamos a entrada de uma enorme classe média baixa, mas ascendente,  nesse sacro santo recinto da classe média tradicional e seus superiores. Víamos famílias desse tipo viajando de avião pelo Brasil afora, muitos comprando pacotes turísticos ao exterior (pagos em “trocentas” prestações, mas acessíveis), comprando lustrosos carros "0 km", pondo filhos em faculdade e até estudando no exterior, e por aí vai. Isso caiu de atravessado na garganta da classe média tradicional, que gostava de mostrar exclusividade.

Ficou uma mágoa, um ressentimento, um pensamento guardado; “Ah! Deixa estar Lula, que, a qualquer momento, nós te pegamos. Assim, que pudermos nós furamos teus olhos!”

E esse momento chegou. E não pode ser perdido em hipótese alguma. E deve ser sorvido com requintes.

E, somente um parênteses, o que ocasionou tal momento? Um contrassenso na verdade. Algo que deveria prestigiar os atuais governantes, mas depôs contra.

Durante os últimos anos foram criadas condições que melhoraram sobremaneira a atuação e a autonomia factual do Ministério Público e da Polícia Federal.

Nos últimos anos esses órgãos foram sensivelmente equipados, seus agentes passaram por grande melhoria técnica, treinamento e salários, tendo obtido os maiores reajustes do setor público federal. Foram editadas leis e normas que deram mais poder aos órgãos e foi permitida intensa liberdade de atuação, principalmente à Policia Federal.

Em nenhum momento, no mínimo nos últimos 10 anos, se soube da atuação de um Procurador Geral ou Delegado Geral (Diretor-Geral) que atuasse como “Engavetador Geral”, na forma como se suspeitava na administração passada.

Assim, graças a esse preparo, pôde-se implementar grandes operações de caça à grande corrupção no Brasil (a corrupção miúda, continua e continuará grassando solta pelo País, sem seus executores sentirem qualquer culpa por isso), o que culminou com operações do tipo Mensalão e Lavajato.

Alguém pensa que operações do tipo poderiam acontecer nos governos anteriores a Lula?! Pois tenham certeza que não!

Não porque não existisse corrupção nesses períodos e nos mesmos órgãos e empresas investigadas hoje em dia. Mas, sim porque a filosofia dos governos antecessores era a de que se deveria "garantir a governabilidade acima de tudo". Policiais e procuradores “fuçadores” não têm, para o bem ou para o mal, qualquer comprometimento com tal governabilidade, mas sim com suas próprias ambições e convicções pessoais.

Assim, pensavam os governantes anteriores, "gaveta neles".

E esse procedimento tem até sua razão de ser, embora não se sustente para sempre. Isso está claro hoje em dia. Embora a opinião pública apoie a continuidade das investigações, dada a sua morosidade e relevância, o País parou para ver. E com isso a economia puxou freio de mão e aguarda quais serão os desdobramentos, quais serão os atingidos, quem permanecerá de pé para dar comandos e quem sobreviverá para ser comandado. A economia capitalista se mantém unicamente pela ilusão da confiança. Abalo de confiança pode levar à ruína sólidas economias. Enquanto persistir a operação LavaJato sem uma definição e desfecho, ninguém pode confiar nos desdobramentos.

Ao final disso tudo, restarão vivos e bem na foto somente as equipes da Polícia Federal e Ministério Público, além do juiz do processo, todos equipados e bem remunerados por políticas adotadas após 2003.

Talvez tenhamos alguns políticos graúdos do governo e grandes empresários presos. 

Mas, e aí! Acabamos com a corrupção no Brasil?

Logicamente que não. E essa nem é a intenção de todo esse processo. De maneira alguma.

A intenção implícita é queimar a ideia de ascensão social rápida no Brasil. Queimando-se uma figura que representa essa ideia. Depois, caso consiga seu tento, após deixar claro que não é por aí que as coisas acontecerão, a classe média tradicional pode sentar à mesa e aceitar um lento, bem lento, processo de repartição de riqueza, como era o projeto de FHC.

Essa é a política do principal partido da oposição. Nada de medidas revolucionárias de redistribuição de renda e inserção social. Mas, sim a criação de alguns mecanismos e a manutenção de uma estabilidade mínima, mas com sobressaltos. Aqueles que conseguirem localizar esses mecanismos e que se mantenham firmes por longo período poderão ser, em algumas décadas, içados a postos mais elevados da escala social.

Dessa forma, a classe média tradicional tem tempo e condições de absorver os “infiltrados”, cooptando-os e tornando-os membros de sua filosofia.

São medidas assim, lentas e inconstantes que o governo paulista se pauta. Ora, caminhamos para 24 anos de governo do mesmo partido e pouco, muito pouco, se sente na melhoria da qualidade de vida e das condições sócio-ambientais no Estado de São Paulo. E isso está de acordo com a política do lento gradualismo do PSDB.

Muitos nascerão e morrerão e nem notarão qualquer diferença em suas vidas.

Essa é a componente sociológica que, a meu ver, explica o tamanho interesse da grande imprensa com o caso. Esse interesse e sua cobertura ostensiva, diuturna, já teria derrubado muitos governos.

Assim, a temática sociológica por detrás de toda movimentação nacional de 2015-2016 é a minha principal indignação quanto ao assunto. Mas, não a única.

Partindo para as outras questões, uma outra indignação reside na motivação para o grande torpedeamento ao atual governo?

Primeiro, colocou-se em cheque a apuração da eleição, querendo recontagem de votos. Não conseguindo isso, passou-se a incentivar uma movimentação nacional pelo golpe. Tal movimento tanto fez que conseguiu fundi-lo aos resultados das investigações da Lava-jato que parecia legitimá-lo, como se a sentença final da Lava-jato obrigatoriamente tivesse que resultar na própria renuncia do governo eleito.

Só que não é assim que funciona no mundo democrático. Há regras para isso.

Porém, tais regras não são a motivação de minha indignação, mas sim a desculpa filosófica para o golpe. A desculpa seria terminar a todo custo com o "projeto de poder" do partido da situação, o PT. Ora, que projeto de poder é esse? Projeto de permanecer no poder? É isso?

Em que lugar do mundo um grupo ou partido político não deseja acessar o poder, implantar suas convicções, permanecer para a implementação e ainda permanecer para colher os pretensos frutos? Certamente, até nos reconhecidamente honestos países da Escandinávia é assim. Em todo lugar, qualquer grupo político pretende adentrar e permanecer no poder. É assim que funciona.

Se isso fosse falha de caráter então porque o PSDB encampa 24 anos no poder paulista? Que projeto de poder é esse? Aí pode?

E qual foi, nas últimas duas décadas, o principal projeto de permanência no poder, implementado no âmbito federal? Não foi a suspeitosíssima votação da emenda constitucional que possibilitou a reeleição de FHC? Não seria esse o principal projeto de permanência no poder dos últimos anos? Aí pode?

Outro ponto nesse processo todo é a questão da isonomia no tratamento. Isso me deixa, além de indignado, preocupado.

A forma rápida da apuração dos fatos, com vazamento seletivo de dados como forma de criar opinião pública ou pressionar instâncias de julgamento superiores, a execução irretratável e imediata de sentenças de primeira instância, embora louvável quando queremos singelamente acabar com a impunidade no País, é temerária quando se observa que o procedimento é válido somente para o caso Lava-jato, não se tem conhecimento de outro processo que adote tão célere rito.

Notamos aí que há uma quebra da isonomia, uma das pedras basilares do regime democrático.

Porque não se implementaram ou implementam tais medidas em apurações anteriores  e posteriores da Polícia Federal e do Ministério Público Federal e em todos processos que foram engavetados nos governos passados?

Nunca se viu tamanha dedicação e sintonia PF-MPF-Justiça-Imprensa. 

Na verdade, em um caso emblemático do passado recente, aconteceu justamente o contrário, o banqueiro Daniel Dantas foi solto rapidamente pelo Ministro Gilmar Mendes duas vezes, a Operação da PF, chamada Satiagraha, foi invalidada, e o delegado penalizado por vazar informações, a imprensa comentou o fato aqui e ali por um ou dois dias, depois esqueceu! E quem era o banqueiro Daniel Dantas senão um dos principais operadores dos processos de privatização empreendidos no governo do ora partido de oposição!? Processo de privatização que ninguém do MPF e nenhum grande órgão de imprensa se prestou a investigar com detalhes e minúcias.

Motivado por essas inconsistências é que me sinto indignado, não por estar convicto ou desejoso da inocência de Lula, sua família ou correligionários.

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