terça-feira, 25 de agosto de 2015

(Literatura): O inicio diz tudo

free image on http://www.freeimages.com/photo/volumes-of-words-1537326
O que faz um livro ser inesquecível?

Os personagens, a trama, os dramas, os cenários, as descrições, o desenlace, o final?

Para mim, qualquer coisa desse tipo pode tornar um livro difícil de esquecer. Logicamente temos a tendência a lembrar dos últimos eventos. Uma vida inteira de virtudes pode ser esquecida por momentos finais de luxuria e destempero, ou, contrariamente, uma existência de vícios e crimes pode ser perdoada por um ou outro momento movimento final de compaixão e piedade.



Assim, tendemos a achar que o final do livro, o desenlace de uma trama, um bom epílogo é o que nos fará para sempre refém do livro. Há uma racionalidade nisso, pois, ao vivermos no presente, sempre estamos na iminência dos últimos momentos de nossas vidas. Então, é o que fazemos agora que realmente vale.

Mas, quero aqui render minha homenagem aos inícios, às introduções, aos prólogos. Aqueles instantes em que pegamos um calhamaço de duzentas ou mais páginas e pensamos, será que o aguentaremos até o fim.

São essas primeiras linhas. Os primeiros parágrafos que nos animarão a querer saber o resto.

Essa arte de fazer bons princípios é que me interessa quando pego um livro da loja e penso em comprá-lo ou não.

Nesse tocante, rendo minha homenagem aos três últimos livros do Chico Buarque e, infelizmente, dizendo o nome do homenageado, creio que alguns pararão aqui de ler esse post.

Os três últimos livros do autor: Budapeste, Leite Derramado e O Irmão Alemão, têm primeiros parágrafos tão bem feitos que a editora, em uma das edições, resolveu apresentá-los na capa.

O autor resolve nos inserir na estória já no primeiro parágrafo. Leva-nos lá para o meio da trama já no comecinho. É um leve "flash-forward", não ao final da estória, mas a um momento futuro.

Budapeste começa assim:
"Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase... havia provavelmente algum problema com a palavra quase.

Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda.
Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trémulos. Hoje porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase."
Depois desse introito, o autor volta ao inicio da estória, inicia de fato a contar tudo o que aconteceu para chegar-se a esse ponto. Depois é que entendemos que nesses primeiros parágrafos estão dois dos principais objetos da narrativa do livro, a saber, a paixão do narrador pela língua húngara e por sua professora, mas esses não são os principais temas da trama, apenas são os principais objetos para explicá-los. É um começo espetacular, que me fez levar o livro para casa.

Temos então o início do próximo livro do autor, Leite Derramado, também um deleite para quem aprecia esse tipo de coisa. Começa assim:
"quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher.
E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor.Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra.
Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com bidés, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósia importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília.
Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios.
Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia..."
Aqui já notamos, desde o princípio, que a pessoa que conta a estória é atormentada por seu passado, é um sujeito que vive de lembranças, que lembra de episódios, de momentos, mas não consegue organizá-los em sua memória, vivendo-os novamente a todo instante. É uma pessoa que já viveu melhores dias e se refugia neles, para não perder de vez o pouco de sanidade que julga ainda ter.

É dessa mente conturbada que tiraremos tudo o que pudermos tirar do livro. Teremos que nos habituar a esse jeito de contar os fatos, truncado, repetitivo, fugidio, cheio de desejos pretéritos, é como sentar-se ao lado de nosso avô (ou bisavô, quem sabe!) decrépito, e ouvir suas narrações dos "bons tempos". Só que, aqui, não são somente os "bons tempos" que serão relatados.

O próximo livro, "O Irmão Alemão", também segue essa mesma linha, com um início fascinante:
"Asa de inseto, nota de dez mil-réis, cartão de visita, recorte de jornal, papelzinho com garranchos, recibo da farmácia, bula de sonífero, de sedativo, de analgésico, de antigripal, de composto de alcachofra, há de tudo ali dentro.
E cinzas, sacudir um livro do meu pai é como soprar um cinzeiro. Desta vez eu vinha lendo O Ramo de Ouro, numa edição inglesa de 1922, e ao virar a página 35 dei com uma carta endereçada a Sergio de Hollander, rua Maria Angélica, 39, Rio de Janeiro, Südamerika, tendo como remetente Anne Ernst, Fasanenstrasse 22, Berlin.
Dentro do envelope, um bilhete batido à máquina em papel almaço amarelado e puído:
Berlin, den 21. Dezember 1931
Lieber Sergio Durch Dein Schweigen errate ich.............................. ........................................... ................................................................................... .......................................................................... ................................................................................... .......................................................................... ................................................................................... ......................................................................... ................................................................................... ............................................................. ................................................................................... .......................................................... ................................................................................... .......................................................................... ................................................................................... .......................................................................... ................................................................................... .......................................................................... ................................................................................... .............................................. Freundlich,
Anne
Escrito em alemão, cheio de maiúsculas, dele só posso entender o cabeçalho e a assinatura Anne com caligrafia inclinada para a direita. Sei que meu pai ainda solteiro morou em Berlim entre 1929 e 1930, e não custa imaginar um caso dele com alguma Fräulein por lá.
Na verdade, acho que já ouvi falar de algo mais sério, acho até que há tempos ouvi em casa mencionarem um filho seu na Alemanha. Não foi discussão de pai e mãe, que uma criança não esquece, foi como um sussurro atrás da parede, uma rápida troca de palavras que eu mal poderia ter escutado, ou posso ter escutado mal."
E assim prossegue. Aqui temos o inicio da obsessão do narrador, aquilo que a causou e porque ele não poderia morrer sem chegar a uma conclusão sobre o assunto.

Logicamente, no decorrer do livro, notaremos que isso não era o único drama da vida dele. Havia muito mais músculos, veias e tendões sustentados pelo esqueleto montado pela descoberta do bilhete.

A ideia é somente dar o pontapé inicial, é instigar, é trazer o leitor para o desenrolar da estória, é convencê-lo a sentar ao nosso lado e querer ouvir o restante do relato.

Só isso e por isso o início de um livro é um dos principais motivos que tornam um livro inesquecível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pode falar :)