E não é que, à procura de algo novo para ler, em minhas idas à Livraria Cultura, onde quase sempre gasto meus últimos minutos de almoço, encontrei algo que até parece que mentalizei e inseri em uma consciência coletiva, que tornou disponível a alguém com atributos literários muito melhores que os meus, que o condensou de uma forma que eu próprio nunca poderia.
Mais provável ter ocorrido o contrário. Eu é que pesquei este pensamento do tal repositório mental da humanidade, ali posto inadvertidamente pelo autor, mas, diante de tão pífio talento, eu nunca poderia torná-lo em palavras tão bem ditas.
Ou faltou-me coragem para formular e sorver tal invocação, medroso e temeroso que sou quanto ao "cuidado com o que pedes, pois podes conseguí-lo."
O fato é que, na introdução ao livro "Breve história do espírito", de Sérgio Sant'anna (Cia. das Letras, 1991), obtive o tão empático comigo texto da
"Invocação do Demo pelo contista da Província"
Desesperado, no botequim sórdido, o contista de Ouro Preto invocou do mais fundo de si mesmo as forças demoníacas:
- Ditem-me... ainda que um único e último texto, que contenha a atmosfera desta noite envolta em neblina, em que vagueiam espectros do passado: cavalos com suas narinas fumegantes a resvalar seus cascos nas pedras dessas ladeiras plenas de curvas e surpresas e...
no interior da carruagem, a dama com seu vestido farfalhante, por quem morreria por um sorriso furtivo atrás de um leque o poeta a espiar por uma nesga de janela, ditem-me...
o amor de tal ppoeta: pura sombra, invenção de quem crê que assim deve amar e assim ama? Ou uma falta tão sentida que o faz esfregar seu corpo insone contra a cama, gemer e estrebuchar, passar à noite pelo cemitério, sonhando com violações e pactos de morte: uma sede tão ardida quanto a do escravo no pelourinho, ditem-me...
o gosto dessa água num chafariz de limpidez inatingível, a dor desse escravo, sua última visão embaciada de paisagens africanas, enquanto nas igrejas os sinos dobram, com suas cordas puxadas pelos longos braços da Grande Senhora desde a Europa...
- Ditem-me: o esplendor imperial do sacrifício que no interior dos templos dourados se celebra, o odor do incenso na bênção episcopal, cânticos noturnos, madonas pudicas, a lágrima de cera no olhar do Cristo contemplando a dama, a mesma da carruagem, ditem-me...
o que abriga esta dama em seus suspiros, sua castidade, a pureza que os homens lhe atribuíram por medo de vê-la transbordar em sensualidade, ditem-me, esta sensualidade...
o gozo da escrava nos fundos do casarão, o rastejar do senhor e da serpente e a sede destes outros, como eu, que não vieram aos templos mas à zona, a culpa e que males mais buscam aplacar com doses brutas de cachaça...
ditem-me, o cheiro adocicado desta parte da cidade, fundindo o negro ao branco, o cheiro dos bairros pobres, ditem-me, esta embriaguez, como a cobra que se come pela boca que tudo quer abarcar, o passado mais remoto até este presente, ditem-me...
afim de que eu mesmo me entenda e neste fio me projete para além dessas montanhas, um destinho de poeta e inconfidente, ditem-me, o meu sofrimento e desejo sem limites, ainda que em troca de minh'alma aqui perdida, ditem-me... estas palavras.
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